Dedico este conto ao meu irmão Ricardo
O relógio grita desesperado.
Ronaldo acorda sobressaltado e procura na penumbra de seu quarto o despertador.
Desliga e respira fundo. Quinze para ás três da manhã de uma segunda-feira qualquer.
Ele pensa em aproveitar mais uns cinco minutinhos, mas sabe que o sono será inevitável.
Enquanto escova os dentes lembra do que o seu finado pai dizia em relação ao trabalho: “O trabalho dignifica o homem meu filho”.
Da sua boca surge um conjunto de dentes amarelados cobertos por uma espuma pastosa num sorriso discreto:
- Porra, então eu sou mais do que homem.
Trabalha todos os dias da semana e cada dia num local diferente. Sua função?
É de gritar o nome das frutas da barraca onde trabalha e atende com um sorriso nos lábios e um “muito obrigado” todos os clientes inclusive o mais hostil. Sem esquecer do caminhão cheio de caixas que ele descarrega sozinho, enquanto os seus patrões, um casal de japonês, montam a barraca.
Á noite Ronaldo cursa o supletivo numa escola próxima do seu bairro.
Quando tinha oito anos, seus pais que estavam passando por dificuldades o deixaram na companhia de sua tia, irmã de sua mãe, que morava no Rio de Janeiro. A tia que era de Porto Alegre chegou no Rio com seu marido sem dinheiro nenhum. Dali á oito meses já tinham uma casa e era a mais destacada no local onde moravam.
Ronaldo entrou para a escola e conheceu vários colegas. Estava adorando a vida nova. Era escola, futebol, barriga cheia e muita alegria. Só não entendia porque sua tia dava á ele um pacote para levar todos os dias no morro do Cantagalo. Ela dizia que era cerol. Mas chegou o dia em que a inocência de Ronaldo foi pra debaixo do chinelo e ele acabou descobrindo:
- Pô tia, a senhora me enganou dizendo que era cerol.
- Te enganei não, é que nós chamamos de cerol, é código.
- Mas eu não vou levar mais isso não...
- Que não vai levar o quê, ta pensando que eu vou te sustentar de graça, tem que trabalhar mesmo. E é o seguinte, a partir de hoje acabou a escola pra você, de agora em diante vai trabalhar pra mim e bico fechado.
Foi assim durante três anos, até que os pais dele conseguiram sair do sufoco e buscaram o menino.
Os anos se passaram com tristezas e alegrias, derrotas e vitórias, e Ronaldo só voltou a estudar com 18 anos de idade. Hoje com 23, trabalha e estuda. Logo vai se juntar com sua namorada que está grávida de cinco meses.
Olha no relógio, agarra a marmita e se lança madrugada á fora. Depois de entrar e sair de vielas e pequenas ruas sem asfalto, ele chega no local aonde seus patrões vão lhe pegar dali á dez minutos.
Olhos atentos na rua que a lua esqueceu de iluminar, senta na guia da calçada, acende um cigarro e enquanto aguarda o caminhão se põe a refletir.
A sua situação não é das boas. Os pais da sua namorada lhe pressionam, sua mãe vive batendo cartão no hospital, sempre doente. O dinheiro que recebe dos japoneses vai para a água, luz e o aluguel. E o enxoval da criança nada. Vários são os convites para entrar na vida bandida, bem que não repugna esse meio de vida, mais dia menos dia acaba aceitando o convite. A polícia rouba, os políticos também, só ele é que é o otário.
Quando ia dar sua quarta tragada no cigarro notou uma luz vermelha indo e vindo, qual fossem as luzes de uma ambulância. Mas não, é uma viatura.
Ronaldo cospe no chão, sabe que estão indo pegar dinheiro lá na boca de fumo, e não pra fazer sua segurança como diz o apresentador de um telejornal sensacionalista.
A viatura passa devagar, Ronaldo não abaixa a cabeça, prefere mostrar o rosto, além do mais não tem como esconder a sua cor. O motorista pára, três policiais descem da viatura, um deles com a mão no coldre manda Ronaldo ficar de pé e caminhar até a viatura com as mãos ao alto. Ele odeia ser revistado, ainda mais por policiais que metem a mão com voracidade no seu saco, parecendo que vão arrancar pra fora da calça.
- Ta fazendo o que aqui?
- Esperando um caminhão, sou feirante.
- E esse cheiro?
- É cigarro.
- Que cigarro o quê, um preto feio desse jeito á essa hora na rua, e dizendo que é feirante, entra na viatura.
Ele tentou mostrar o cigarro aceso e a marmita no chão, mas um tapa no rosto o fez calar.
- Entra logo vai.
Quando ergueu o pé direito para subir na traseira da viatura foi empurrado e recebeu um saco preto na cabeça.
- Se tirar isso vai morrer.
O motorista deu a partida e saiu. Ronaldo tentava ver, mas nada conseguia, já imaginava o seu corpo sendo achado no meio do mato. Após alguns minutos o carro parou, uns instantes de conversas e novamente a viatura voltou a andar. Ronaldo sabia que ainda estava em seu bairro, o sacolejar do seu corpo é constante, conhece os buracos de cada rua e ouviu quando o motorista reclamou:
- Esses filhos da puta não têm o que fazer e ficam inventando essas lombadas.
A viatura voltou a parar depois de vinte minutos. Um policial abriu a porta traseira e mandou Ronaldo descer. Ele pensou em reagir, não iria morrer assim á toa. O policial tirou o saco da cabeça e o mandou correr. Ele ficou inerte. Morrer correndo não. O PM insistiu:
- Vai caralho, quer morrer?
Ronaldo começou a correr. E ficou aliviado quando olhou pra trás e viu a viatura indo embora.
Aos poucos diminuiu a velocidade e começou a andar. Pegou na carteira o cartão telefônico e procurou um orelhão. Passou por seis, mas só deu sorte no sétimo.
- Tanto telefone nas ruas pra só um funcionar.
Quando tirou o telefone do gancho e introduziu o cartão, viu que não aparecia às unidades, ia retirar e colocar de novo, mas o telefone havia engolido o seu cartão. Preferiu não quebrar o aparelho, isso não iria trazer o seu cartão de volta. Mas tinha que ligar para o celular do seu patrão e avisar o ocorrido, sabia que ele poderia pensar que Ronaldo se atrasou e demiti-lo no ato.
Preferiu ir pra casa, nessas horas o melhor é ser paciente. Mas quem é que tem paciência depois de levar tapa na cara e ter passeado com a polícia logo de madrugada?
Ronaldo sempre é perseguido, quando não é pela polícia que sempre o enquadra, é pela depressão. Depressão que amarra sua garganta e faz cair lágrimas dos seus olhos.
O pai faleceu á quatro meses atrás, vítima de bala perdida. A namorada está grávida, a mãe doente, um emprego sem exploração ainda é um sonho.
Chegou em casa e esperou dar oito horas. Não respondeu a pergunta da sua mãe que surpresa de sua presença perguntou:
- Ué, em casa essa hora filho, não teve feira hoje não?
Ás oito ele saiu de casa, entrou numa viela, cortou a direita, desceu a rua de terra e apertou a campanhia duma casa com portão de madeira. Quando foi atendido pelo seu colega, explicou o ocorrido e pediu para usar o telefone.
A voz do seu patrão foi áspera e cheia de sotaque, e o que ele falou não foi diferente do que Ronaldo pensou. Estava demitido. Não interessa o que aconteceu, por causa dele o casal de japonês chegou atrasado no local da feira e não houve como montar a barraca.
Ele saiu da casa do colega com a cara fechada, nem atendeu ao cumprimento do seu Florêncio, dono de um bar no bairro.
Chegou em casa decidido. Abriu a gaveta da velha cômoda e pegou uma arma 38 de cano longo que pertencia ao seu pai. Esperaria até a noite para agir. Não iria para a escola, que se foda os alunos que só vão para a escola pra fazer peso. Danem-se os professores que não querem nada com nada. Que se foda todos e todas.
No seu interior havia dois sentimentos únicos. Um era o sentimento bomba e o outro era o sentimento doce. Mas acionaram o sentimento errado, acenderam o rastilho, e agora segura que o pacífico homem bomba explodiu.
Ademiro Alves (Sacolinha), é idealizador
do projeto cultural Literatura no Brasil.
Participa de três antologias e da Caros amigos
Literatura Marginal ato III. Atualmente
procura editora para o seu
primeiro livro, um romance intitulado:
Graduado em Marginalidade!
COMENTÁRIOS
Colaborações deste autor:
Para ver todas as contribuições deste autor, clique aqui.