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Quinta - 21 de Novembro de 2024
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Só queria ler um livro

Por: Marco Garcia


De início o silêncio. O momento vivido por ele ali era um imenso vazio. Ele se via num globo rodeado de um grande vácuo. Um total maracanazzo.

Em menos de dois décimos de segundos a situação se reverte. O silêncio foi quebrado por uma sinfonia seguida de alguns dizeres.

Quebrou-se a morbidez do espaço vago. Nos primeiros acordes ele não deu muita atenção. Todavia, pela insistência da sua repetição, a "melodia" que saía das caixas de som daquele veículo construído especialmente para transportes de cargas, penetra a parte do  seu cérebro que é dotada da capacidade de identificações sonoras.

Sentado como está, imóvel, ele prossegue a sua leitura que iniciara apouco. Agora ela é feita com som de bg. O local que ele está, a sua casa, localiza-se em uma rua ligeiramente inclinada, o que a deixa livre do iminente perigo de enchentes.

A sua residência está estacionada ali há mais de dez anos. O veículo, juntamente com a trilha sonora, passa em frente do seu portão. O que faz com que ele escute, com melhor nitidez, a melodia e a locução.

Aquele conjunto de sons não lhe parecia estranho, já ouvira aquela harmonia em algum programa esportivo. Neste momento, o ritmo de sua leitura já não é o mesmo. A capacidade para decifrar os códigos, formados por consoantes e vogais, diminui. Irritado, ele xinga até a trigésima quarta geração do condutor do veículo e da empresa que o obriga a fazer um tour diário pelas alamedas de seu querido bairro. O som é incessante.

Ele fecha o livro, deixa-o em cima da cama, e sai na varanda da casa. Apóia as mãos na grade para observar o caminhão. Inútil, ele já havia se retirado do local. Só pôde visualizar um moço, de bermuda e sem camisa, indo com um botijão de gás, que acabara de adquirir, em direção da rua que contorna o muro do colégio.

Agora, o ambiente aparentemente calmo não consegue lhe satisfazer, pois ele sabe que, dali alguns minutos, a poluição sonora voltaria e, quem sabe, mais intensa. Era só o tempo de o motorista manobrar e voltar, em marcha lenta, para refazer o percurso.

Inconformado com aquele imbróglio todo, ele se recorda do tempo remoto em que o comércio de gás era feito por homens que iam, porta a porta, perguntando às donas de lares se elas não estavam precisando daquele produto destilado usado como combustível doméstico. De tempos para cá o sistema de venda mudou. Hoje, são caminhões barulhentos que não têm horário definido para passar.

Outro dia ele estava com o prato da janta posto, lá pelas 10h30, e começou a ouvir o barulho que a propaganda da empresa gaseificada fazia. Um absurdo, àquela hora da noite?

Já teve vontade de ligar e fazer as devidas e merecidas reclamações para o número que fica pregado na carroceria do caminhão, antes da frase: "Como estou dirigindo?". Afinal, aquilo que estão fazendo é, para ele, um total desrespeito com o cidadão comum e de bem que quer chegar em casa e ter, junto com a sua família, momentos de paz e tranqüilidade.

Porém, suas revoltas não vão além de pensamentos jogados ao ar. Ele, nessas horas, é pego praticando atos de puro conformismo. Desanimado, percebe o bico do "focinho" do caminhão que, manobrado, descia novamente a sua rua, resolve entrar e retomar a leitura. Mesmo que para entender o próximo parágrafo, terá que repetir zilhões de vezes todo o percurso ótico sobre as letras perfiladas como se estivessem na fila de algum espetáculo público.


 

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