Sem lembranças!
Ele não lembra mais de mim.
Ele se esqueceu quando entreguei panfletos e carreguei seu nome numa bandeira.
Bati em diversas portas pedindo apoio para sua candidatura. Militei demasiadamente. Comi lanches vagabundos durante dias e perdi meu único tênis.
No dia decisivo, fui um dos primeiros a ver sua foto na máquina. Fui esculachado pela polícia, na frente de dezenas de pessoas, por estar fazendo boca de urna.
E ele não lembra mais de mim.
Dois anos se passaram. Continuo no sufoco.
Acordo cedo, tomo um café ralo e saio de cabeça baixa, procurando latinhas cidade á fora.
Minha mãe trança um cabelo aqui e costura uma roupa ali.
Quando o técnico do time do futebol de várzea traz os uniformes para ela lavar, é sinal que Deus lembrou da gente.
E ele?
Ele não lembra mais de mim.
Sempre esteve por aqui mas o poder é tarefa e ele, por sua vez, se tornou um grande tarefeiro.
O seu transporte agora é avião fretado, quando não, desfila de importado.
E eu, não passo mais debaixo da catraca, cresci, entro pela porta de trás.
Eu visto a miséria e ele, a ostentação.
Ontem fumava cigarro, hoje desfruta de charutos cubanos.
Ele não lembra mais de mim.
Fui preservativo. Meteu-me nas entranhas do povo, e depois de ejacular, me descartou e foi curtir a sensação.
Hoje se veste com malhas e algodão, casimira e sedas italianas. Suas gravatas são da galeria Hernés, de Paris.
Come nomes estranhos, uns vindo do mar, outros dos grandes frigoríficos.
O carteado entre amigos foi substituído por cassinos internacionais.
Ele não lembra mais de mim.
Algum tempo atrás, foi estrategista e filósofo, até profeta, mais um profeta mentiroso.
O tempo vai passar, e ele terá duas, três, ou mais contas bancárias.
Vai adquirir muitos conhecimentos na área em que atua, e na próxima vez, talvez não precise mais de mim. Irá pagar para o mais renomado dos marketeiros, a fim de abocanhar mais e mais votos.
É, e furtará cada vez com maior perfeição as esperanças do povo que insiste em elegê-lo.
Até quando?
Até que existam pessoas como eu que botam fé no cara, enquanto ele, bem ele jamais se lembrará de mim.
Ademiro Alves (Sacolinha)
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