O RAP não foi a razão da violência; mas se tornou, por meio das canções, uma das representações da violência. Os produtores do RAP perceberam a força do tema no cotidiano e o conseqüente reforço dado pelos meios de comunicação, e se especializaram em abordar a violência em todas as suas dimensões.
Dessa forma, o RAP passou a inverter o discurso dos meios de comunicação, cantando, de outro ponto de vista, os fatos relatados de forma ideologizada.
Portanto, este ritmo musical apresentou versões alternativas do discurso midiático da violência. Ivana Bentes e Micael Herschmann (2002) analisaram a explosão do funk e do Hip Hop nos anos 1990, destacando a “criminalização” e a incorporação dos seus movimentos pela indústria cultural da música. No entanto, longe da aparente aceitação e conciliação da “atitude rapper”, o que se sobressaiu, segundo os estudiosos, sobretudo nos temas cantados pelos rappers, foi o conflito, ou seja, o discurso do confronto sócio-político, o que distanciou o RAP da “cordialidade” e da domesticidade de outros estilos musicais, como MPB e samba.
Para Bentes e Herschmann (2002), o RAP produziu um contra-discurso neutralizador da fala incriminatória dos noticiários que costumava associar os rappers à criminalidade nas favelas e nos morros. Os autores desenvolveram o conceito “marginais midiáticos”, que ocuparam a mídia, muitas vezes de forma indireta, expressando os fazeres do pobre através de um discurso raivoso de rebeldia e com o potencial de mobilizar e seduzir camadas juvenis nas periferias e fora delas.
As letras de RAP contribuíram para a compreensão de como parcela dos(as) jovens viveram na periferia de São Paulo, bem como dos significados que deram às representações que fizeram de suas vivências, marcadas por profunda escassez, privação e violência.
Entender historicamente as escolhas, os vislumbres de alternativas e as expectativas que esses jovens representaram em suas canções foi um desafio, na medida em que as letras carregaram sonhos, desejos, dores, esperanças e projetos (ou, em algumas delas, a falta disso tudo), ou seja, fortes cargas de subjetividade.
O rapper se apresentou como portador da autoridade e de uma legitimidade, conquistada por sofrer o que cantava, para falar sobre as mazelas que afetaram parcelas dos jovens das periferias. Isto ficou evidente na propriedade com que usaram o vocabulário, as gírias e os palavrões, compondo uma linguagem artística de rua que representava a própria luta pela sobrevivência.
Porém, o fato de o RAP ter sido confundido preconceituosamente com o crime, como se a expressão incitasse à violência, impediu que a representação feita pela letra fosse plenamente apreendida.
Os alertas, feitos pelos rappers, acerca das armadilhas que o sistema capitalista armou contra o jovem pobre foram vistos como convocação para uma guerra contra a sociedade. No senso comum, desenvolveu-se uma odiosa idéia de que o jovem afro-brasileiro, pobre, morador das periferias, sem acesso a uma escola de qualidade e, conseqüentemente, sem colocação no mercado de trabalho seria um potencial criminoso. Nesta ótica, as letras de RAP, difundidas majoritariamente entre esses jovens, foram tomadas como elementos de reforço da “fúria” contra a “sociedade de bem”.
No entanto, ao contrário disso, o RAP, como (um dos senão o único) instrumento de conscientização e veículo de transmissão de mensagens dos jovens afro-brasileiros pobres, foi a voz mais competente para avisar que a verdadeira “malandragem” era viver.
Antes de julgar, os rappers procuraram (ou se preocuparam em tentar) compreender as circunstâncias que levaram o ser humano a adotar determinado comportamento, sobretudo o considerado contra a lei.
Não se encontrou outro discurso musicado, além do RAP, que fizesse tantas críticas ao tráfico de drogas, às drogas lícitas e ao crime em geral. Os rappers perceberam e cantaram o fato de a destruição do povo afro-brasileiro e pobre servir aos interesses de grupos sociais que detinham os poderes econômico e simbólico. A estes nunca interessou que os jovens fossem instruídos, auto-conscientes e participativos.
Os rappers souberam que o processo de excluir jovens de periferia da inserção social, da cidadania, do direito à voz, longe de ter sido um problema, foi, sim, um projeto para que as expectativas se estreitassem, para que as opções de escolhas fossem restritas.
As escolhas mal feitas precisariam de cuidados especiais, punições. Então, espaços e serviços passaram a ser gerados pelo Estado e pelos que se locupletavam dele, rendendo-lhes dividendos através da exploração da miséria alheia. Criaram o problema para vender a solução.
O RAP foi criado como voz e caminho para os que, até então, não tinham espaços para serem vistos e ouvidos. Então, os rappers preocuparam-se com o futuro livre dos seus parceiros e aliados e disseram que não adiantava acabar com a escravidão física, se esta continuava na dimensão simbólica, na mente.
Reconheceram que alguns pobres e/ou afro-brasileiros se deslumbravam por fama, status e, seduzidos pela ideologia dominante, acabaram colocando por terra toda a consciência de grupo. A força do RAP foi ensinar, àqueles que souberam aprender, a identificar o inimigo, que muitas vezes esteve entre eles ou mesmo dentro deles.
Neste sentido, o RAP, guardados os conflitos de posições e os paradoxos, foi visto como uma possibilidade do estudo de uma alternativa educacional, capaz de formar politicamente e criticamente o jovem, bem como responsável por fortalecer o questionamento da construção dos papéis sociais que identificaram os jovens socializados nas periferias da cidade de São Paulo durante a década de 1990.
Mesmo quando o RAP difundiu, paradoxalmente, pensamentos conservadores adotados e arraigados também entre parcela dos jovens pobres, permitiu que as respostas fossem produzidas na mesma medida. Pois, as rappers, se sentido ofendidas com algumas letras, invadiram um território majoritariamente masculino e usaram as próprias ferramentas que eles dispunham para reivindicarem espaços de expressão de suas idéias. Eles cantaram contra a repressão e violência policial, o desemprego, o crime, as drogas.
Elas cantaram contra o sexismo e a violência que atingiam as mulheres. No entanto, rappers homens e mulheres não caminharam em sentidos opostos, já que não se afirmou que havia o RAP dos homens em contraposição ao RAP das mulheres, ou grupos rivais.
Nesse sentido, alguns homens e mulheres socializados nas periferias da cidade de São Paulo na década de 1990, que viveram uma vida de exclusão, opressão e violência, procuraram, usando o RAP como veículo, cantando e rimando, modificar essa realidade (CARVALHO, 2006:176-179).
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