por Anna Carolina Botelho Takeda
São Paulo, show dos Racionais na Praça da Sé, expectativa de um puta show acontecer. Pois é, aconteceu mesmo, mas não como o esperado porque a polícia, ilustríssima polícia, conseguiu inverter o jogo e chamar mais a atenção que o próprio Mano Brown. Na quinta ou quarta música do show, lá pelas 5 da manhã – a galera alvoroçada com a lucidez das rimas dos Racionais – começou a pancadaria. Show lotado, todo mundo se esmagando para conseguir ver aquela figura persistente no palco, a galera cantando alucinada as músicas que falavam da dura realidade enfrentada pelas periferias, pelo Capão Redondo, Jardim Rosana, o Fundão. Era um troço foda para quem, como eu, nunca tinha assistido a um show dos Racionais.
Mano Brown sobe no palco e de cara fala algo sobre as atitudes sinistras da polícia em relação à periferia. A galera concorda em peso porque quem estava ali não era um monte de playboyzinhos universitários como no show anterior do Nação Zumbi, e para quem a polícia, em maior escala tenta ser eficiente. Quem estava ali, salvo algumas exceções, eram os manos, as minas das periferias que convivem com essa polícia incoerente, repressiva, vingativa e corrupta que nasce para cuidar de bens, patrimônios e não de vidas humanas. Alias, pelo jeito que nos trataram, nem éramos gente mesmo, éramos uma massa sem rosto, sem vida, sem alma. Éramos algo próximo de uma boiada que se amontoava para fugir dos “tiros de borracha” das pistolas policias. Essa polícia que no dia seguinte do show disse à imprensa que estava ali para conter as “guerras”, as arruaças dos possíveis baderneiros do show. Porém, quem eram esses arruaceiros, maloqueiros, ladrões, etc? Eram pobres, subordinados, pretos, marginalizados em geral. Pessoas que na sociedade não possuem valor, que causam ojeriza aos cidadãos de “bens”, aos privilegiados que em muitos casos só se aproximam dessa massa periférica porque essa é seu funcionário, seu subordinado, os lavadores de seus banheiros em shopping center, que são isentos de qualquer subjetividade. Pobre nem nome tem, tem cargo, e de fato, cargos de subordinação aos cidadãos de “bens”.
Quem já prestou atenção nas letras dos Racionais pôde notar que as letras são de fato violentas, que tem tiro, cocaína, crack e morte, porém, isso é parte do retrato de uma realidade cruel que não é exposta na mídia com teor de verdade. Essas letras não são violentas à toa, elas são violentas porque a violência está no cotidiano dessas pessoas que se identificam com as letras e clamam por justiça. O que incomoda os policias e as classes médias é que as letras dos Racionais trazem uma realidade que quase ninguém quer ver. Elas plantam em cada um daqueles atentos fãs a consciência da situação em que vivem. Claro que a classe média, os universitários que estavam no show da Nação Zumbi não querem ouvir aquelas letras violentas, não faz o menor sentido aquilo tudo, porque não vivem essa realidade de assassinatos cometidos por policiais, onde os corpos amanhecem nas ruas e a única explicação possível encontrada pelos moradores dessas regiões periféricas é de que “os PMs mataram mais um”.
A classe média tem a polícia atendendo seus condomínios de luxo e sua ocorrência policial de furto de automóvel. Para eles sim a polícia pode parecer um pouquinho mais eficiente, porém pra pobre e favelado, aí a coisa começa a complicar. Quem são esses policias para os marginalizados? São exatamente o contrario do que são para os cidadãos que possuem os “bens” e as propriedades. Os policias para os pobres são os agentes das mortes de quem se ama, violam a dignidade de crianças e adolescentes que crescem revoltados com tais atos. Situações essas recorrentes nas periferias e que não apresentam punição aos culpados. São os famosos crimes cometidos por “ninguém”, ou seja, crimes que não causam a menor comoção nacional.
Naquela multidão que foi amassada e na qual eu também estava, me doía essa cegueira coletiva da classe média, esses polícias que em comunhão com a mídia transformam seres humanos ricos em peculiaridades, em bandidos baderneiros. Existe uma guerra civil camuflada por trás desse discurso de paz para todos. Paz pra quem? Pra classe média que está sendo achatada e mesmo assim se endivida para tentar manter uma posição que não possui mais? Somos parte da mesma crueldade de tal sistema econômico voraz que avassala qualquer possibilidade de paz. No caso das periferias se toma consciência mais rapidamente que o restante da população, principalmente por ser ela que sofre os danos mais diretos dessa extrema desigualdade social dos novos tempos.
Os Racionais e outros grupos de rap nascem para denunciar essas porcarias todas que a desigualdade social produz. Eles possuem um novo discurso que desconstrói crenças institucionalizadas por grande parte da população e restauram a dignidade desse povo maltratado e humilhado cotidianamente.
Anna Carolina Botelho Takeda é estudante, professora de literatura e membro do Fórum de Hip Hop e Poder Público.
annacbt@hotmail.com